terça-feira, 11 de março de 2008

A arte acabou no supermercado - Arnaldo Jabor

Jornal O Estado de São Paulo - Terça-feira, 11 de março de 2008

Continuo adorando o Jabor!

Estive uma vez sentado no hall do velho Hotel Algonquin, em Nova York, onde outrora retumbaram hinos e onde se reuniam os gênios das décadas de 20 e 30 no famoso Oak Room. Nesse hotel bebiam e comiam os donos da ironia, patente importante da intelectualidade literojornalística americana. Ali sentado, eu imaginava ouvir os risos de Dorothy Parker e pensava no grande Edmund Wilson, com seus cinco martinis enfileirados, tomando um depois do outro, até cair no tapete persa. Para onde foi o charme dos artistas e intelectuais? Onde estará a frase mordente do Alex Olcott de hoje, onde andará o neo-Harold Ross, fundador da New Yorker, onde se esconde o George S. Kaufman e até o genial Harpo Marx com seu sorriso de anjo sem-vergonha? Adorava aquele hotel onde ficava, na esperança de que os fantasmas dos anos 30 me segredassem soluções no ouvido.

Bons tempos, quando os artistas eram olhados como messias chiques em Paris e Manhattan, cheios de veneno e esperança, línguas afiadas, muitos olhados com humildade bovina pelos idiotas que, como dizia Nelson Rodrigues, ficavam de boca aberta, de onde pingava a baba elástica da admiração. Hoje, com a pós-neoliberalização da cretinice, os idiotas se metem em tudo além de criarem uma subarte de massas repulsiva e triunfante. Os artistas ficaram sem admiradores, saudosos dos anos 20 ou 30, quando eram deuses. Sobrou ao artista apenas uma atitude masoquista, fazendo qualquer coisa para reconstruir uma ''aura'' à sua volta, até se mutilando em body art ou em instalações grandiloqüentes.

Lembrei-me do Algonquin porque, outro dia, me caiu nas mãos um velho número do The Atlantic Monthly, no meio havia um artigo que parecia uma resposta aos meus devaneios.

''Onde estão os artistas?'', perguntava o ensaísta Brad Holland, lembrando que muitos criadores dos anos 20 aderiram ao ''futurismo'' que pregava ''a substituição da lenta tradição do século 19 por um mundo veloz e moderno de máquinas, violências de marketing e relações públicas''. E brincava, dizendo que ''é preciso ter cuidado com os intelectuais. Às vezes eles conseguem o que querem''.

O tom do artigo de Holland, cáustico, de uns anos atrás, era parte daquele momento da euforia do pós-moderno, quando tudo que denotasse esperança de mudar o mundo era ridicularizado. E o pior é que muitas frases do Holland continuam tendo sentido. Criticam a onipotência que os intelectuais erigiram como consolo, desde utopias estéticas até o delírio voluntarista. E Holland, tripudia em cima: ''Duchamp fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou ao fim da vida jogando xadrez, como se fosse um manifesto artístico. Meu avô também acabou num urinol jogando xadrez.'' E, criticando o dadaísmo e o surrealismo: ''Hoje é impossível distinguir esses dois movimentos estéticos da vida cotidiana.''

E continua: ''Há décadas que o establishment artístico é composto por escultores de terra, sujeitos furando o corpo e violoncelistas de topless'', diz Brad.

Tudo para evitar o terrível. E o ''terrível'' é a evidência da vitória do sonho americano que esmagou o sonho europeu. Talvez a arte tenha virado mesmo um mero entretenimento, talvez não passemos de efêmeros produtores de objetos parciais, passageiros e descartáveis. A morte da ''aura'' da arte talvez seja mais difícil de aceitar do que pensávamos. Aceitá-la é aceitar a morte. Hoje, a aura passou para o próprio artista, que se vê como um profeta abandonado. O Holland ainda sacaneia: ''Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda.'' É cruel, mas é na mosca.

É duro ouvir frases que Mallarmé poderia ter dito como ''Estamos tentando romper com as normas'' sendo usadas como slogan do anúncio do McDonald''s. Estas picadas do marimbondo americano são úteis: ''O artista atual típico produz uma obra pequena envolvida por muita teoria. Poderia dispensar a obra e expor a teoria.'' Ou criticando a arte engajada: ''Sempre que vejo um artista querendo me ''conscientizar'' me lembro de Jane Fonda e Sissy Spacek explicando ao Congresso as realidades da vida rural.'' Ou ainda sobre o ''multiculturalismo'' politicamente correto que dizima as universidades: ''Não entendo por que os artistas que odeiam os clichês de sua própria cultura desejem tão ansiosamente adotar os clichês de culturas sobre as quais eles nada sabem.''

E Holland sacaneia também o expressionismo abstrato: ''As multinacionais não podiam enfeitar seus halls de estilo Bauhaus com retratos de palhaços tristes e casinhas de campo. Por isso, o abstracionismo foi inventado.''

A mesma amarga gozação, ovante com a vitória do pragmatismo, era usada sobre a pop art. ''Antes, os ricos encomendavam belíssimos quadros para seus palácios. A reprodução dessas obras acabava em calendários pendurados nos postos de gasolina. Hoje é o inverso: o sujeito pinta uma caixa de sopa vagabunda que acaba pendurada na sala dos ricos.'' O artigo de Holland mostra um outro lado mais ''sanitário'': criticava o utopismo narcisista que a arte teima em manter, se recusando a aceitar a finitude da obra no mundo, a não ser com um desespero saudoso, a não ser com a melancolia que celebra o feio. Disfarçado, mesmo em tortuosas ''instalações'', o artista busca uma ''essência'' que o mundo de hoje rejeita.

Abrir mão da utopia da arte moderna é tão difícil quanto abrir mão de velhos dogmas políticos. Que será da arte? Como dói perder a fé... Estamos precisando de um novo Van Gogh. Que arte precisa ser reinventada? Talvez um ''neo-sublime'', agora que o nome de Picasso já é uma marca de carro.

Será que há lugar para uma nova exaltação da vida, uma arte profunda dentro desse pântano dos cânones americanos de mercado? Enquanto a ciência está ''bombando'', a arte toda, da literatura ao cinema, vive esse dilema.

Lendo essas coisas graves eu pensava no hall do Algonquin, e imaginava os bons tempos, vendo o fantasma tênue de Edmund Wilson cair de porre no tapete secular, comendo a última cereja do dry martini.

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